Segurança no trânsito não é luxo — é pacto civilizatório

SEGURANÇA VIÁRIA EM RISCO: A Ameaça da Autovistoria e do Credenciamento Irrestrito

Segurança no Trânsito como Pilar Civilizatório

O trânsito moderno representa uma das maiores conquistas da vida urbana, mas também um dos maiores desafios de saúde pública. Segundo o Plano Global da ONU para a Década de Ação pela Segurança no Trânsito 2021–2030, aproximadamente 1,3 milhão de pessoas morrem e outras 50 milhões ficam feridas anualmente em sinistros viários. A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) reforça que “o trânsito é um dos sistemas mais complexos e perigosos com o qual as pessoas interagem diariamente”.

Neste contexto, duas propostas que vêm ganhando espaço sob o discurso de modernização colocam em risco avanços fundamentais: a autovistoria veicular e o credenciamento irrestrito de empresas de vistoria, sem critérios técnicos ou territoriais mínimos. Embora travestidas de soluções modernas, tais iniciativas ameaçam a integridade técnica, jurídica e social do sistema de segurança viária.

  1. Autovistoria: a falsa promessa de agilidade e desburocratização

A ideia de permitir que o próprio cidadão realize a vistoria do seu veículo, sem presença técnica, tem sido defendida como forma de reduzir burocracia e custos. Parlamentares como o deputado Kim Kataguiri têm promovido a proposta como uma medida de “avanço tecnológico”. Contudo, essa visão ignora dados alarmantes.

Ofício da CNVV enviado à Casa Civil (Ofício 006/2025) alerta que, em Estados como Piauí (38,07%), Mato Grosso do Sul (36,53%) e Maranhão (25,94%), a vistoria presencial impede a transferência de veículos em más condições. Permitir que essas etapas sejam feitas por autodeclaração abre margem para fraudes, veículos adulterados, sinistrados, clonados — e para a explosão da criminalidade organizada no setor automotivo.

Além disso, o PL 3.965/2021, que inseriu essa possibilidade via emenda legislativa, foi aprovado sem qualquer debate técnico com os órgãos de trânsito. Trata-se de um clássico “jabuti legislativo” que fere os princípios da eficiência e da precaução, promovendo insegurança jurídica e administrativa nos DETRANs estaduais.

  1. O credenciamento irrestrito e o colapso da fiscalização

Outro equívoco é tratar a atividade de vistoria veicular como se fosse um serviço de mercado comum, sujeito à livre concorrência plena. A vistoria, entretanto, é uma delegação do poder de polícia administrativa, não devendo ser confundida com um mercado liberalizado.

Experiências em Estados onde o credenciamento foi aberto sem critérios demonstram uma queda drástica na taxa de reprovação — em alguns casos, chegando quase a zero. Isso não representa uma frota mais segura, mas sim a perda da função fiscalizadora das empresas, que passam a aprovar veículos apenas para atrair mais clientes.

 

A Resolução CONTRAN nº 941/2022 e o art. 79, §1º, da Lei nº 14.133/2021 (nova Lei de Licitações) exigem que os editais de credenciamento contenham critérios técnicos, operacionais e territoriais. A omissão desses critérios compromete a qualidade dos serviços, incentiva a concorrência predatória e inviabiliza a fiscalização efetiva.

III. Impactos econômicos, criminais e na saúde pública

Os custos da negligência são altos. Em 2024, o Sistema Único de Saúde (SUS) gastou mais de R$ 3,8 bilhões com internações e atendimentos a vítimas de sinistros viários — um aumento de 216% em relação à média dos cinco anos anteriores.

A vistoria veicular, quando realizada com rigor técnico, é uma ferramenta estratégica de prevenção de acidentes. Ao desregulamentar esse serviço, não apenas se ampliam os riscos para a população, como se agravam os prejuízos ao sistema de saúde, à segurança pública e à economia formal — com prejuízo direto à arrecadação e à rastreabilidade veicular.

O Delegado da DIVECAR/DEIC de São Paulo já alertou: “a vistoria física é essencial para coibir esquemas de fraude estruturada”. A autovistoria, ao contrário, representa uma brecha institucional para esquemas ilícitos de emplacamento, financiamento e revenda de veículos adulterados.

  1. O dever do Estado frente aos compromissos internacionais

A Resolução 74/299 da ONU e o Plano Global para a Segurança Viária 2021–2030 deixam claro: cabe ao Estado assegurar a integridade técnica dos veículos como um dos cinco pilares fundamentais para reduzir mortes no trânsito. A proposta da autovistoria, além de romper com esse compromisso, retira do Estado sua responsabilidade legal e moral de garantir um trânsito seguro.

Permitir que o próprio cidadão, sem formação técnica, realize a vistoria do seu veículo, ou liberar empresas para atuar sem qualquer critério estruturante, viola diretamente os eixos centrais do sistema seguro: veículos seguros, vias seguras, comportamentos seguros e resposta eficaz aos acidentes.

Responsabilidade, técnica e legalidade como fundamentos inegociáveis

A autovistoria e o credenciamento irrestrito não são avanços — são retrocessos que colocam vidas em risco. Representam populismo técnico, legislações casuísticas e ameaças diretas à função preventiva do Estado. A fiscalização veicular deve permanecer sob responsabilidade de profissionais qualificados, com critérios claros de credenciamento e controle.

Se o objetivo é modernizar, que seja com base em evidências, estudos técnicos e compromisso com a vida. O veto à Emenda nº 2 do PL 3.965/2021 é, portanto, medida urgente, respaldada na Constituição, na legislação infraconstitucional e nos compromissos internacionais do Brasil.

 

 

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